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3 - HISTÓRIA LOCAL


VENDA NOVA PELA MEMÓRIA DE SUA GENTE 

Dilma Célia Mallard Scaldaferri


HISTÓRIA LOCAL

Acreditamos ser importante trabalhar com o “tempo dos lugares”, esse tempo que é próprio de cada espacialidade: a história local.


“A história local requer um tipo de conhecimento diferente daquele focalizado no alto nível de desenvolvimento nacional e dá ao pesquisador uma ideia muito mais imediata do passado. Ele a encontra dobrando a esquina e descendo a rua. Ele pode ouvir seus ecos no mercado, ler o seu grafite nas paredes, seguir suas pegadas no campo”[1].

           



 Vocês, estudantes de hoje, têm direito a uma História diferente daquela que seus pais e avós conheceram, a chamada História Geral e do Brasil. Uma História que narrava acontecimentos do Brasil e do mundo a partir de fatos  políticos considerados como marcos das mudanças da vida das sociedades, deixando de fora a história dos homens comuns, em lugares ou localidades  comuns, onde as pessoas vivem outras histórias, permeadas de projetos, conflitos e contradições. 

            Segundo Jacques Le Goff (1985), a História do cotidiano revela-nos o sentimento de duração nas coletividades e nos indivíduos, o sentimento daquilo que muda, bem como daquilo que permanece, a própria percepção da História.
No entanto é necessário tomar certos cuidados ao estudar a História local. É importante entender que a realidade local não contém em si mesma a chave de sua própria explicação. As questões culturais, políticas, econômicas e sociais de uma localidade, relacionam-se com outras localidades e outros países, em processos históricos complexos. Logo, é necessário conectar o que acontece ao seu redor com a vida de outras sociedades, em diferentes tempos e espaços. Essa inserção deve ainda oportunizar-lhe a reflexão sobre o seu papel de sujeito histórico desde um contexto restrito à comunidade local até uma realidade social mais ampla, em termos nacionais ou mundiais.
            Não distante do grande centro metropolitano de Belo Horizonte, na capital de Minas Gerais, ainda existe um lugar com cultura e formas de sociabilidade pertencentes a um mundo do pretérito, que em muitos aspectos questiona o tempo linear da nossa modernidade. Mas, ao mesmo tempo, a sociedade desse mesmo lugar apresenta formas de vida inerentes à realidade pós-moderna, incrementadas pelo progresso das tecnologias, novidades e conforto. Trata-se da comunidade vendanovense.
            Venda Nova é uma região administrativa de Belo Horizonte, mais precisamente uma das nove regionais[2] dessa capital e apresenta características bem singulares. Completou 300 anos em 2011, um longo período de vida própria que a situa de forma privilegiada no cenário histórico e cultural da região metropolitana, com dinâmicas históricas não existentes na própria capital.
 A população da região vivencia hoje um burburinho de pessoas e veículos nas ruas movimentadas como Padre Pedro Pinto, José Joaquim dos Santos, Antônio José dos Santos e Avenida Vilarinho, dentre outras De acordo com o Censo 2010 do IBGE, a regional Venda Nova possui uma população de 262.183 habitantes numa área de 28,30 km². Uma extensão territorial que faz limite com as regionais Norte e Pampulha e com os municípios de Ribeirão das Neves, Santa Luzia e Contagem.
 A região conta com duas estações de integração BHbus, a Estação Venda Nova e a Estação Vilarinho, o Metrô de Belo Horizonte também atende Venda Nova através da integração intermodal na Estação Vilarinho, além disso também há uma grande quantidade de linhas semi-expressas, circulares, suplementares, diametrais e intermunicipais que liagam Venda Nova ao Centro de Belo Horizonte e a outras regiões ou cidades. Ônibus coletivos, vagões do metrô, carros particulares, transitam por ali o tempo todo. E as pessoas de vários cantos de Minas, do Brasil e do mundo misturam-se no local.
Com o avanço da industrialização e a construção do aeroporto da Pampulha, Venda Nova acompanhou o ritmo das transformações. A abertura da Avenida Antônio Carlos, a construção do Conjunto Habitacional IAPI e o início das obras de Niemeyer no Complexo da Pampulha ajudaram nesse desenvolvimento. A criação da Avenida Nossa Senhora da Piedade em 1946, hoje Pedro I, é considerada o marco de desenvolvimento da região.
 Na década de 1970 o núcleo central de Venda Nova adquiriu grande importância para os novos bairros que surgiram, como o Santa Mônica, São Paulo-Venda Nova, Lagoinha- Venda Nova, Mantiqueira e Rio Branco, e na década de 1980, o Esplendor, Europa, Lagoa, Serra Verde, Jardim dos Comerciários, Maria Helena e Nova América.
Distantes do centro da cidade e marcados pela carência de serviços urbanos, esses bairros passaram a utilizar o comércio, os serviços e as áreas de convivência que já existiam no espaço de ocupação mais antiga, o que fez crescer a importância do núcleo de Venda Nova como centro regional e articulador..  Percebe-se então que a região central de Venda Nova que era considerada periferia de Belo Horizonte e cidade dormitório[3] acabou se tornando uma referência fundamental para os bairros nascidos ao seu redor e cresceu muito nas últimas décadas do século XX. Mas, apesar desse centro histórico ser uma referência de peso para a vida sociocultural da localidade, grande parte da população cresceu e se expandiu fortemente polarizada pelo centro metropolitano de Belo Horizonte, sem identidade com a as raízes  culturais de  Venda Nova.
            A ocupação territorial desordenada gerou uma subdivisão de 44 bairros[4]. Há um bairro que leva o mesmo nome da regional, isto é, Venda Nova, confundindo a referência geográfica local O nó urbano[5] de Venda Nova se concentra na Rua Padre Pedro Pinto, desde a Praça da Matriz e até a praça Amintas de Barros e na Avenida Vilarinho.
 A atividade comercial é o grande foco econômico da região, principalmente na Rua Padre Pedro Pinto, Avenida Vilarinho e ruas adjacentes.   São inúmeras as lojas de departamentos e de eletroeletrônicos, assim como pequenas lojas locais, agências bancárias, lanchonetes, supermercados, shoppings, sendo um deles de grande porte, o Shopping Estação BH.  A localidade possui 40 escolas municipais, entre UMEIS, escolas de Educação Infantil e de Ensino Fundamental, dez creches conveniadas com a Prefeitura e um Centro Cultural.  Há vários centros de saúde, uma farmácia distrital, uma central de material esterilizado, Laboratório Distrital Norte, Venda Nova e Pampulha, um centro de referência em saúde mental, CERSAM, um centro de convivência para portadores de transtornos mentais e comportamentais, uma unidade de pronto atendimento em 24 horas, além do Hospital de Pronto Socorro Risoleta Neves.
Atualmente Venda Nova é polo de crescimento no sentido norte de Belo Horizonte, região de acesso ao Aeroporto Internacional de Confins e ao Centro Administrativo do Estado e sede da futura Catedral Metropolitana de Beagá. Depois da construção da Linha Verde e do Centro Administrativo Presidente Tancredo Neves, espera-se um crescimento maior para a economia local e que isto possa se reverter em benefícios sociais e culturais para a população, pois os vendanovenses, cidadãos comuns, necessitam de várias melhorias nos setores da saúde, segurança, educação, saneamento básico, transporte público, lazer e daí por diante.
Não se pode esquecer aqui da “comunidade guerreira” de Venda Nova, ao longo desses trezentos anos de existência do local. Um forte laço de solidariedade entre os membros da comunidade mais antiga foi sempre marcante nas lutas reivindicatórias em busca de benefícios: água encanada, eletricidade, a canalização do Córrego Vilarinho, a melhoria do sistema de transportes, a criação da Regional Venda Nova, a luta recente pela revitalização do Córrego do Capão, dentre outros. Mesmo em tempos bem remotos há registros desse espírito participativo dos vendanovenses.
Em um documento de 1781, os vendanovenses de então solicitavam autorização para abrir no local um comércio de secos e molhados e em 1787 pessoas do povoado escreveram uma carta à D. Maria I, rainha de Portugal, pedindo-lhe autorização para construir em Venda Nova uma capela para suas rezas. Relatos da historiadora regional, Ana Maria Silva[6].

 “Queixãoce a Vossa Magestade Fidelissima os moradores do arraial de Venda Nova, freguesia do Curral D’El Rei, Comarca de Sabará, que padesendo de grande necessidade de pasto espiritual (...) se animaram a mandar pedir a Vossa Magestade  em nome do glorioso Santo Antônio a licença para fazer ali a sua obra que todos os moradores querem...” 




NOS TEMPOS DOS ARRAIAIS


Os municípios que hoje formam a grande BH (RMBH) e adjacências, tais como Ribeirão das Neves, Contagem, Vespasiano, Santa Luzia, Lagoa Santa, Esmeraldas, Betim, Nova Lima, etc; se desenvolveram em terras pertencentes ou oriundas de Sabará, às margens do Rio das Velhas, que era a vila mais importante da região no século XVIII.
            Em 17 de julho de 1711 o então arraial foi elevado à categoria de Vila Real de Nossa Senhora da Conceição de Sabarabuçu.  A produção de ouro era enorme, sendo Sabará um dos núcleos de mineração da província que encaminhava grande quantidade de ouro à Coroa portuguesa.  A Vila foi crescendo e a população se enriqueceu.   A produção intensa do mineral fez com que se instalasse ali a Casa da Intendência de ou Casa da Fundição, para cobrança do quinto.
            Era o apogeu de Sabará, os barões, militares e senhores de Minas, vivendo em mansões, com móveis, liteiras e pajens ao estilo europeu e um dos maiores contingentes de escravos de então. Testemunhas vivas dessa época de fausto e riqueza são as obras arquitetônicas centenárias. O viajante e naturalista francês Saint-Hilaire, por ocasião de sua visita em 1818, relatou “... não é raro encontrar-se em Sabará homens que receberam instrução e que sabem o latim. O povo da cidade de Sabará é tão civilizado e amante da instrução, que custa a encontrar-se um sabarense que não saiba ler, escrever, contar, música e ofício[7].
            No século XIX, muitos dos distritos antes subordinados a Sabará, foram desmembrados: Congonhas do Sabará, atual Nova lima, Santa Luzia, Sete Lagoas, Santa Quitéria, atual Esmeraldas, Belo Horizonte, dentre outros. Os distritos mais importantes foram se emancipando, deixando com Sabará os mais pobres e dificultando a arrecadação dos cofres municipais.
            De 1858 , por meio de um ofício da Câmara de Sabará ao presidente da Província de Minas Gerais, vislumbra-se uma  exposição de motivos para a alta dos preços dos alimentos e possivelmente  para  a decadência econômica da tradicional cidade. Segundo Eduardo França Paiva[8] apontava-se:... “a falta de mão de obra para a agricultura, a alta taxa de mortalidade de escravos, a perda de mão de obra para a mineração do Morro Velho e para a Companhia União Indústria, o tráfico de escravos para o Rio.”
            A Proclamação da República, em 1889, veio trazer novidades ao velho núcleo de  Sabará e seus entornos, com repercussões profundas para o Arraial de Curral Del Rei, que deixou de ser distrito de Sabará em 1890. 





                                                        BELO HORIZONTE CAPITAL                                                                                                     

Com o processo da escolha do local adequado para a construção da nova capital de Minas Gerais, que deveria ser construída em quatro anos, foi criada uma comissão construtora, chefiada pelo engenheiro Aarão Reis.  Após estudos feitos em Juiz de Fora, Barbacena, Várzea do Marçal, Curral Del Rei e Paraúna, a comissão definiu-se por Belo Horizonte, ou seja, o antigo Curral del Rei[9]. A escolha de Belo Horizonte se deu principalmente por suas qualidades climáticas e topográficas.

Segundo Abílio Barreto[10]...

“A zona circunjacente do arraial compunha-se de campos naturais e artificiais, capoeiras e cerrados, exceção feita às áreas cultivadas. Por ali não se viam florestas e sim algumas matas e capoeiras. Tal era o arraial fadado a ser a famosa capital de Minas e cujo panorama se mostrava realmente maravilhoso, sobretudo visto do alto da serra do Curral ou do Pico do Taquaril, ponto culminante do Distrito. (...) Dali avistava-se o casario branco de Contagem, a oeste; a nordeste, a cidade altaneira e legendária de Santa Luzia, branquejando no alto: aqui, acolá, ao norte, divisam-se capelinhas, ermidas filiais das matrizes de Lagoa Santa, Matosinhos, Venda Nova. Um pouco mais próximo, e lá estava a cidade de Sabará, a cujos pés serpeava o Rio das Velhas”.

            A construção da nova capital do estado, Belo Horizonte, proposta pelo governo republicano, em território desmembrado do município de Sabará, viria representar um forte golpe para a posição de destaque de Sabará, notadamente quanto à sua tradicional função de centro cultural e de serviços.
Num clima de euforia os horizontinos, antigos curralenses, receberam a notícia da construção da nova capital. Durante três dias o arraial se pôs em festa, com missa solene, discursos, bandas de música e bailes. Seus habitantes já sonhavam com modernização e o progresso que a capital traria para a região. Só não imaginavam que, nos planos dos construtores, não havia espaço reservado para muitos dos antigos moradores. Torna-se notório observar que antes mesmo da implantação da capital já havia registros de ocupação territorial em Venda Nova, Barreiro e Marzagão - hoje pertencente a Sabará; espaços estes bem distantes do centro  de Curral Del Rei. Sem condições financeiras para adquirir os valorizados terrenos da área central da capital muitos moradores foram empurrados para bem mais longe, indo se refugiar em Venda Nova ou em cafuas na periferia. O que pode ser confirmado pelas palavras de dona América Bonifácio[11]:

Seu Jacinto Pereira da Silva era um farmacêutico poliglota. Com a chegada de Belo Horizonte para Curral D’el Rei, ele deixou sua casa , uma casa boa, para as novas autoridades oriundas de Ouro Preto. Eles tiveram que deixar as casas, foram indenizados e saiam. Arrumavam casa fora. Ele foi para Venda Nova.”

            As obras da capital transformaram rapidamente o lugar. Cafuas e brejos foram desaparecendo e nos lugares deles eram construídos os prédios públicos, e muitas casas de duas, três e quatro janelas[12]. A área urbana foi projetada para ter 30.000 habitantes e toda a cidade por volta de 250.000. 
            De acordo com estudos de Greive Veiga e Faria Filho[13] os urbanistas da capital, de finais do século XIX e início do século XX, se aproximaram de reformas que atendessem aos apelos da modernidade: aliar o progresso material ao progresso das mentes numa sociedade convulsionada por novas técnicas, novas ciências e novas formas de interferência na sua estrutura política. A construção de Belo Horizonte foi se fazendo nas práticas das novas relações sociais e econômicas necessárias para o desenvolvimento e progresso material.
            No traçado da planta da zona urbana se definiram características geométricas rígidas, tendo como ponto de convergência diversas praças e espaços destinados à edificação pública e à futura zona comercial. A combinação de traços geométricos com edifícios imponentes, praças e parques simbolizavam os ideais de civilidade na qual todo habitante deveria se mirar. Era o espaço da população proprietária e civilizada. A zona suburbana localizava-se em terreno de recorte irregular e, ao contrário do que foi estabelecido para o perímetro urbano, o traçado foi adequado à topografia do sítio. Os subúrbios eram precários com destaque para a provisoriedade das edificações.
            A construção da capital mineira, para Greive Veiga e Faria Filho gerou, sobretudo, novos problemas para grande parte da população, com os quais essas pessoas foram se defrontando e convivendo. Não somente a edificação de palácios, o arruamento de novos bairros, o novo parque, mas também a presença de demolições e desapropriações, as ações da polícia, a formação de aglomerados populacionais, a proliferação de barracos, das epidemias e as novas regras do trabalho.

SANTO ANTÔNIO: DOS CLEMENTES/DO BARRANCO/ DE VENDA NOVA

 O cronista Benvindo Lima, que registrou a história contemporânea de Belo Horizonte em seu livro Canteiro de Saudades (1910-1950)[14], conta-nos que o povoado de Venda Nova era conhecido como Santo Antônio dos Clementes – nome dado pelos primeiros moradores. Há referências de vários nomes anteriores para a região, como Santo Antônio do Barranco e Santo Antônio de Venda Nova.
            Pela tradição oral, conta-se que o nome atual surgiu para identificar uma venda, que era mais nova em relação às anteriores. Uma venda que oferecia todo tipo de produtos – de arroz e toucinho a querosene, caso raro na época. O estabelecimento ganhou destaque e freguesia. Os clientes vinham de todas as partes, atraídos pelas vantagens da nova venda.
De fontes orais podemos registrar as hipóteses do suposto nome Venda Nova.

De seu Antônio: “Venda Nova, é eles contam, papai conta, contava também né que Venda Nova, é...tinha lá embaixo, lá perto da casa de minha sogra; ali embaixo perto do SUS.(... ) Dali que surgiu  uma outra venda, cá em cima. Dali o povo falava:” Ah, vão comprar na Venda Nova? Então eu sempre  conto que a venda era do meu tio Altino. Mas há pessoas contam de outra venda, noutro lugar”[15].
Da professora Sandra Suely: “A parada do ônibus acontecia em uma venda e durava aproximadamente vinte minutos, para o uso dos sanitários - casinhas construídas sobre fossas - e para comermos uma merenda. Fecho os olhos e começo a relembrar: o chão de cimento grosso, caixotes de madeira com divisões para cereais, que eram vendidos no quilo,em saquinhos de papel pardo. A imagem de Santo Antônio, padroeiro e protetor dos moradores, no centro da prateleira, que ocupava toda a parede da entrada. Grandes rolos de fumo de várias qualidades. Sobre o balcão, legumes e frutas eram expostos em gamelas de madeira bem talhadas. Um fogão de lenha do lado e, sobre ele, no cheirinho da fumaça, bexigas de salame, pedaços de toucinho e lingüiças. Doces caseiros dos mais deliciosos, fubá de moinho d’água. Nossa merenda era como um manjar dos deuses. Pão com salame e café bem quentinho; o pó, moído na hora! O pão era enorme, de meio quilo. O vendeiro colocava-o sobre o balcão e ia cortando as fatias. Os “espertos” pegavam as partes do meio, que eram mais largas; as pontas,ficavam para os últimos. Quem desejasse poderia também comprar um pedaço derosca caseira, com um gostinho irresistível de cravo e canela, ou deliciar-se com um cobu broa de fubá com queijo, assada na folha de bananeira.”[16]
De Eliciana da Cruz: ” Com o passar do tempo, a casa que existia próxima da igreja foi derrubada e em seu lugar foi construída uma pequena venda, onde podíamos encontrar de quase tudo. Se fartava o açúcar nas minhas latas eu dizia pro Maurício, meu minino mais véio: vai na venda do Sô Zequinha, ele liberô pra gente inté qui saia o ordenado de seu pai. E nisso, todos que precisavam de alguma coisa.procuravam a venda. Se faltava o querosene para o lampião, dizia ‘vai à Venda Nova’ que acha, a vela para a procissão: ‘vai a Venda Nova’, o sabão para a lavadeira: ‘vai a Venda Nova’ e assim surgiu o nome.(...). Em frente à venda foi construída uma pequena praça.(...) Hoje no lugar onde foi construída a Venda Nova existe uma imensa loja de eletrodomésticos, o Ponto frio”[17].


VENDA NOVA EM FOCO
Todos os municípios que formam a Região Metropolitana de Belo Horizonte, além de outros mais, desenvolveram-se em terras pertencentes à Sabará, primeira e mais importante cidade da região até a construção da nova capital.  Essas localidades emanciparam-se aos poucos, tornando-se municípios. Segundo a tradição oral, o povoado de Venda Nova completou 293 anos em 2004, tendo-se iniciado por volta de 1700 como pouso de tropeiros que por ali passavam com gado e mercadorias vindos da Bahia, através da Rua Direita, atual Padre Pedro Pinto, seguindo o Rio São Francisco e depois o Rio das Velhas para abastecerem de mantimentos a região das minas de ouro.
            João Andrade Montalvão[18],  em entrevista sobre a história de Venda Nova, confirma que a boiada passava na Rua Direita. Ele complementa que as boiadas vinham de Curvelo, de Sete Lagoas de Pirapora e que eram conduzidas ao matadouro no bairro Santa Efigênia, em Belo Horizonte.  
De pontos de parada dos tropeiros desenrolou-se grande parte do povoamento de Minas Gerais, com o aparecimento de grandes e pequenas propriedades rurais, arraiais, vilas e até cidades que tiveram importância na rota comercial. Foi a partir de um desses pontos de descanso que surgiu o núcleo central de povoamento da Região de Venda Nova.
            Durante quase 300 anos, o Distrito de Venda Nova esteve ligado administrativamente a Sabará, ao Curral Del-Rei, a Santa Luzia, a Campanha, atual Justinópolis, e a Belo Horizonte. Em 1925 Venda Nova pertencia ao município, termo e comarca de Belo Horizonte. Já em 1937, na revisão administrativa do estado o distrito deixou de pertencer à capital passando para o município de Santa Luzia. No entanto os vendanovenses não acataram com satisfação essa deliberação do governo. Assim grupos de liderança local se movimentaram a fim de conseguir a reintegração do distrito ao município de Belo Horizonte. Em contrapartida, havia um interesse do prefeito de Belo Horizonte, Otacílio Negrão de Lima, pela extensa área desse Distrito para a construção de uma das cidades satélites ao redor da capital, planejadas pelo seu governo. Em 1948 Venda Nova foi definitivamente anexada a Belo Horizonte.
            O processo desse projeto de anexação foi pesquisado pela historiadora Ana Maria Silva. A seguir o artigo 1°.[19]

“Fica o Prefeito autorizado a entrar em entendimento com a Prefeitura do MunicÍpio de Santa Luzia no sentido de serem estudadas as bases para anexação ao Município de Belo Horizonte do Distrito de Venda Nova, para que nele se construa a futura cidade satélite.”

            Nas décadas seguintes, pela narrativa da historiadora Silva[20], o perfil da região começou a ser alterado com o aparecimento de novos bairros, a população aumentou e com isso os problemas: a falta de água, luz, saneamento, dentre outros. Então, por volta de 1960, ocorreu um movimento separatista calcado em aspirações cidadãs, uma mobilização com o objetivo de conseguir, por meio da Assembleia Legislativa, a emancipação do Distrito de Venda Nova.
            No entanto a questão provocou uma divisão nas lideranças locais. Os emancipacionistas, liderados pelo pároco José Marzano Matias, Acácio Pontes, Jorge Ferraz e Armindo Caixeta tiveram sua proposta derrubada pelas articulações do grupo político contrário ao movimento, formado por famílias de renome, facção que temia que a hegemonia política e econômica se revertesse em prejuízos para o desenvolvimento da região.
            Venda Nova seguiu anexada à capital mineira, mas a frequência desses movimentos reivindicatórios motivou a criação, em 1973, da Administração Regional de Venda Nova, que atendendo aos anseios da população, veio descentralizar vários serviços prestados pela Prefeitura de Belo Horizonte facilitando a vida dos moradores da região. 
            Venda Nova fazia parte do "Cinturão Verde" de Belo Horizonte. Nas margens dos córregos da localidade, ainda limpos, eram plantadas verduras que iam abastecer a capital. Na década de 1930, famílias de japoneses e alguns alemães mudaram-se para lá, em busca de clima mais frio e de terras agricultáveis. Esses novos agricultores influenciaram beneficamente vários costumes locais, com suas hortas e pomares belíssimos. Atualmente, em um determinado espaço habitado pelas famílias antigas do lugar ainda existe uma área de chácaras, quintais, árvores e muito verde, há casas que ocupam quarteirões, lembrando as cidades do interior de Minas.
            Com uma área geográfica distribuída por cerca de meia centena de bairros Venda Nova é também conhecida por outros motivos, principalmente por suas atividades culturais. O Baile da Saudade, criado com a intenção de recuperar e manter a cultura negra ou “black”, é a principal referência da Soul Music em Minas Gerais.  De forte traço da cultura negra existem em Venda Nova grupos de capoeira, que atuam em projetos de protagonismo juvenil, entre estes os Mandingueiros dos Palmares e  o do Professor  Eduardo Teixeira, o Jabuti e o Teatro Negro e Atitude fundado por Hamilton Borges em 1993, com sua “cara preta”, para que negros e negras dessas Minas Gerais fossem protagonistas da sua história. Venda Nova ainda é conhecida, pelo mito do Capeta do Vilarinho. Nome proveniente da Quadra que deu origem ao mito, que por sua vez se origina do nome do Córrego do Vilarinho, atualmente avenida canalizada de mesmo nome. Os festejos tradicionais, oriundos da religiosidade católica ainda são destaque das comemorações locais: a festa de Santo Antônio, o padroeiro local, a de São Pedro e de São Sebastião. Não poderia ser esquecida a Folia de Reis de Tia Nazinha, presente na região do bairro Jardim Europa, conduzida pelo Sr. Nilo Alves Franco, que mantém essa tradição há mais de 30 anos. Festas essas que atraem multidões da comunidade regional.
            Venda Nova conta com um Centro Cultural, que funciona também como arquivo documental, lugar de apresentações, centro educativo e referência de intercâmbio cultural e um Centro de Referência da Memória de Venda Nova que   tem como sede o Casarão da Rua Boa Vista 11, ou Casa Azul e Branca, sob a gerência do (CCVN).
            É um local de memória construído no século XIX. A moradora Lúcia César Santos[21], que batalhou ao lado da comunidade para ter de volta esse ícone arquitetônico, revela “O mestre Luiz Daniel Cornélio da Cerqueira era um homem de posses, muito importante em Curral del-Rei, onde foi delegado e professor. Favorável à mudança da capital de Ouro Preto, recebeu muito bem a comissão construtora de BH, mas na hora da desapropriação do seu imóvel não concordou com a avaliação.” Segundo ela a insatisfação foi tão grande que ele resolveu comprar terras em Venda Nova e construiu em  1894 um casarão elegante que tinha  até piano.
             Com a morte de Luiz Cornélio, em 1916, o casarão teria ficado em poder das sobrinhas e passado por vários donos. Na década de 1960, recebeu alunos do Grupo Escolar Santos Dumont, enquanto a escola era construída, depois foi um restaurante e voltou para as mãos de particulares, até pegar fogo, em 17 de julho de 2007 e ficar abandonado.
            O sobrado lembra em sua trajetória a mitológica fênix, pois renasceu  das cinzas  como patrimônio histórico de Venda Nova. O projeto da reedificação da Casa Azul e Branca pela Prefeitura de Belo Horizonte foi feito com a implantação da UMEI VENDA NOVA no local, com  uma área menor  destinada  ao Centro de Referência da Memória de Venda Nova.   D Lúcia César ficou muito feliz com a restauração do casarão e  na qualidade de guardiã da memória de Venda Nova  assim se expressou:  “Ficou muito bonito, estou satisfeitíssima. Parece até mais belo do que antes e vai durar muito ”.

PALAVRAS FINAIS
Registrar uma descrição de história local, mais especificamente da história da região de Venda Nova e das experiências urbanas de seus moradores, guardadas em fontes históricas, mas principalmente em arquivos particulares, foi uma forma de tentar fortalecer os elos da memória coletiva dessa localidade e, também, de problematizar suas  relações, no presente e no passado, com a cidade de Belo Horizonte.
            A identidade vendanovense traz consigo séculos de cultura, de história e memória. Encarna um entrelaçamento de vivências, de saberes, de celebrações religiosas, de movimentos políticos e culturais. Ela apresenta uma rede de significados, de conhecimentos históricos que ainda não foram reconhecidos pelos belorizontinos como sendo “patrimônio municipal”. Uma educação patrimonial a respeito da cultura e da história de Venda Nova possibilitará a abertura de entendimentos que poderão promover o fortalecimento dessa importante cultura local.



REFERÊNCIAS
- BARRETO, Abílio. Belo Horizonte: memória histórica e descritiva: história antiga e história média. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1995.  v.1.
- SILVA, Ana Maria. Lembranças... Venda Nova. Belo Horizonte: 2000.
- PAIVA, Eduardo França. Venda Nova Séculos XVII ao XIX Um estudo de história regional. Belo Horizonte: 1992.
- PBH, Assessoria de comunicação. História de Venda Nova em contos e causos narrados para crianças e jovens. Belo Horizonte: 2003.
- PBH, Assessoria de comunicação. História de Venda Nova em contos e causos narrados para crianças e jovens .Volume II. Belo Horizonte: 2005.
- http://portalpbh.pbh.gov.br
- http://pt.wikipedia.org
- Depoimentos e relatos orais de moradores da região.
Enciclopédia dos Municípios Brasileiros – Volume XXVII ano 1959.
- VEIGA, Cynthia Greive e FARIA FILHO Luciano Mendes. Belo Horizonte: a escola e os processos educativos no movimento da cidade. Varia História- Departamento de História FAFICH/ UFMG, 1985.
- SAMUEL, Raphael. História local e história oral. In: Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH: Marco Zero, 1990. p.219- 243.
- ZAMBONI, Ernesta (1993). “O ensino de História e a construção da identidade”. História – série argumentoSão Paulo, SEE/ Cemp.



[1] RAPHAEL, Samuel. História Local e História Oral. In: História do Quadro Negro. Escola, ensino e aprendizagem. Revista Brasileira de História, ANPUH. Marco Zero (vol.19, nº19) 1999, p. 220
[2] Espécies de subprefeituras, encarregadas dos bairros de cada uma das regiões em que Belo Horizonte está subdividida administrativamente. Atualmente são nove regionais, a saber, BarreiroCentro-SulLesteNordesteNoroesteNorteOestePampulha e Venda Nova,

[3]Cidade que é  usada para as pessoas passarem a noite, quando o seu trabalho e suas atividades econômicas estão sendo desenvolvidas em outra cidade..  
[4] Apolônia, Canaã, Candelária, Cenáculo, Céu Azul, Conjunto Minas caixa, Conjunto Serra Verde, Copacabana, Europa, Flamengo, Jardim dos Comerciários, Jardim Leblon, Lagoa, Lagoinha, Leblon, Laranjeiras, Letícia, Mantiqueira, Maria Helena, Minas Caixa,Nossa Senhora Aparecida, Nova América, Parque São Pedro, Piratininga, Rio Branco, Santa Mônica, São Damião, São João Batista, Serra Verde, Universo, Várzea da Palma, Venda Nova

Vila Canto do Sabiá, Vila Copacabana, Vila dos Anjos, Vila Jardim Leblon, Vila Mantiqueira, Vila Piratininga, Venda Nova, Vila Santa Mônica Primeira Seção, Vila Santa Mônica Segunda Seção, Vila São João Batista, Vila Satélite, Vila SESC.
[5] Local de concentração do comércio e de pessoas.
[6]  Centro de Documentação da Cúria Metropolitana de Belo Horizonte, CX da Paróquia de Santo Antônio de Venda Nova. In: SILVA, Ana Maria da. Lembranças... Venda Nova. Belo Horizonte: Secretaria Municipal de Cultura. 2000,P.9.

[7] Fonte: http://www.asminasgerais.com.br/qf/univlercidades/Cidades/Sabara/index.htm. Acesso em10/11/2013
[8] PAIVA, Eduardo França e outros. História da Região de Venda Nova no Século XIX e Início do Século XX- Inscriptum  Pesquisas Históricas Ltda. Belo Horizonte:1992. P.26.

[9] Após a proclamação da república os moradores de Curral del Rei sentiram necessidade de mudar o nome do arraial. Foram indicados dentre outros Terra Nova, Novo Horizonte, Cruzeiro do Sul, Cidade de Minas. Em 1901 a cidade passa a denominar-se definitivamente Belo Horizonte.
[10] BARRETO, Abílio. Belo Horizonte: memória histórica e descritiva:história antiga e história média. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1995.  v.1, P.245.
10 OLIVEIRA, América Bonifácio Costa de. Coleta de Depoimentos Orais .Entrevistadora: Marina Mônica de Freitas/ Inscriptum Pesquisas históricas Ltda,Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte- minas Gerais, Belo Horizonte, julho/1990



[12] Segundo D. Nísia Werneck, em Acervo da História Oral da UFMG- Jornal Estado de Minas -  BH 100 anos-1996, as casas de duas janelas eram para faxineiros, a de três janelas eram para funcionários públicos e as de quatro janelas para os desembargadores
[13]VEIGA, Cynthia Greive e FARIA FILHO Luciano Mendes. Belo Horizonte: a escola e os processos educativos no movimento da cidade. Varia História- Departamento de História FAFICH/ UFMG, 1985.
[14] LIMA, BENVINDO. Canteiro de Saudades (1910-1950). Belo Horizonte. 2001.
[15] SILVA, Ana Maria. Apostila. PROJETO; “A história de Venda Nova através de Fontes Orais” Belo Horizonte, 2000. Entrevista com Antônio Ferreira Neto
[16] PEREIRA, Sandra Suely Oliveira Pereira, Venda Velha. In:. HISTÓRIA de Venda Nova em contos e causos narrados para crianças e jovens. Belo Horizonte: Prefeitura; Administração Regional Venda Nova, 2003. p. 36-39. Acervo APCBH, Sala de Consultas.
[17]CRUZ, Eleciana Tavares da. Vá à Venda Nova. In: HISTÓRIA de Venda Nova em contos e causos narrados para crianças e jovens 2. Belo Horizonte: Prefeitura; Administração Regional Venda Nova, 2003. p. 36-39. Acervo APCBH, Sala de Consultas.

[18]SILVA, Ana Maria. Apostila. PROJETO; “A história de Venda Nova através de Fontes Orais” Belo Horizonte, 2000. Entrevista com João Andrade Montalvão
[19] Projeto de Resolução da lei  de anexação de Venda nova a Belo Horizonte.Pág 1.. In:SILVA, Ana Maria da. Lembranças... Venda Nova. Belo Horizonte: Secretaria Municipal de Cultura, 2000. P.13
[20] SILVA, Ana Maria. Lembranças de Venda Nova. Belo Horizonte: Secretaria Municipal de Cultura, 2000. P.13.

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